sábado, 18 de setembro de 2010

Brincando de pedrinhas.


Observavam as duas meninas juntas. Elas brincavam na grama com pedrinhas, guiando-as, controlando-as. Eles as observavam, elas falavam. (Se calavam.) Uma conversa muito estranha. Para elas, tudo muito natural. Haviam coisas que só aconteciam e vinham a tona quando estavam juntas. Curiosos, seguiam ouvindo sem saber. Algo de cores e pessoas. Percebia-se que falavam sério, ainda que parecesse brincadeira. Maria e Joana pensavam bastante igual, assustavam. Pessoas que tinham cores, eles se olhavam sem entender. Nem tentavam. Elas quase sempre se esforçavam.

O esforço era sem querer, muitas vezes cansavam e diziam não se esforçarem mais. Mas quando viam lá estavam, se esforçando de novo. Não eram melhores que ninguém, nada, e eles já pensavam isso sem nem saber porque. Mas eram boas sim, não madres, mas boas, sim, de corações machucados, molinhos. Eles analizavam os movimentos de mãozinhas e pedrinhas, elas falavam sem nem perceber. Falavam sem parar. Falavam delas mesmas, de suas cores próprias, inventadas. Sentimetos.

Eles podiam não achar, mas elas eram quase da mesma palheta. Vinho, marrom, tais tons, sempre escuras. Maria pensava que Joana brincava mais pelo vermelho que ela, forte, chamativo. Joana via roxo em Maria, que achava a cor fria, mas Joana discordava, gostava do roxo. Maria, ás vezes, via Joana laranja queimado. Gostava muito ! Sabia-se que gostava porque desejava o tal laranja queimado à amiga querida, ainda que ela não se sentisse assim de verdade (o que doía a Maria). O que pensava Maria, era que Joana ás vezes se pintava de laranja queimado e ria alto, sentindo cosquinhas. Mas, no final, conhecia-se bem Maria, que doía com Joana o vinho, o vermelho escuro, o marrom. Não que fossem só triste. Eram sim cativantes, quentes, intensas (nunca sangue). As duas menininhas eram intensas, extremas, muito ou nada (nunca nada). Bonito, eram beleza. Pesadas, continuavam a conversa entre cores e pedrinhas. Simples, como eram. Complexas, como as viam. Até que Joana se machucou e Maria foi ver o machucado: "Quando vai sarar ?!", os olhos negros molhados, nariz vermelho de choro, dor. Maria a olhou: "Não sei, mas espero que logo !". Desejo real, violeta alaranjado.

Soprou e inventou uma história para distrair a amiga, que se acalmava aos poucos com as palavras tortas, cegas e sem sentido de Maria que, desesperada, não sabia como curar o machucado de Joana. Seu machucado. Machucado de amabas que, no meio de cores inventadas, seguiam falando sem parar, tacando pedrinhas no longe do gramado que as acolhia. E eles sempre muito observadores, atentos pelo superficial, nunca notando o que realmente acontecia alí, entre tais pedrinhas coloridas.

Mas era fato que aqueles que observavam sentiam inveja do mundo alheio ao qual viviam, o mundo alheio no qual elas viviam. Mal sabiam ! Pensavam, talvez, que por brincarem de colorir pessoas tinham várias cores em seus mundinhos. Não sabiam mesmo nada de nenhuma das duas. Talvez não pensassem isso, e a inveja fosse de qualquer outra coisa. Ou, talvez, nem inveja fosse ! Delírios ! Mas as duas seguiam, se importando sem se importar por tais observadores, por tais sentimentos gratuítos que lhes chegavam como facas. Facas de plástico, que demoram a cortar. As menininhas sorriam, o papo das cores havia chegado a uma e outra pessoa que as tocavam realmente fundo, que lhes coloriam. Joana e Maria, gostavam dos que se davam a oportunidade da cor.

Cansadas e sonolentas, seguiam citando nomes próximos e alheios, impressões, sentimentos. Uma ou outra descolorida, o que lhes causava desconfiança: "Também desconfio de gente colorida demais." disse Joana colocando uma pedrinha ao lado de outra, Maria balançou a cabeça, concordava. Aqueles que olhavam julgavam, ainda que quisessem evitar. Beliscaram as coxas até ficarem vermelhas, sentiram a dor da qual fugiam, estavam vivos ! Mas, que cor seriam ?! Não sabiam, talvez Joana e Maria tivessem a resposta. Mas elas estavam bastante cansada dos tais observadores, tinham sono, preguiça, queriam poder dormir um pouquinho longe dos olhares e apertões causados por tais pessoas que, covardes, fugiam de sentir. Porém, ainda que soubessem, nenhum dos que olhavam se atreviam a perguntar, a se aproximar. Medo. Medo de se deparar com alguma cor desconfortável, triste, apagada, fujona. Elas seguiriam colorindo as pessoas, a seus gostos. O ponto de vista dos outros não lhes importavam naquele momento, que observassem ! Medrosos !

Os que observavam, então, vivos mas sem viver, se retiraram com coxas doloridas. Sem cores, descoloridos. Maria olhou um por um. Joana se fechou ante todos. Jogaram longe as pedrinhas e sairam caminhando por entre as cores do mundo. Lhes restavam sentir, doer, pesar, voar e colorir com quem quisesse lhes acompanhar. Juntas ou separadas, não havia outra saída. Ainda que se afogassem em tintas alheias, nadavam até a superfície da maneira que conseguissem. Respiravam com dificuldade, tinham tintas de outros em seus pulmões. Ainda assim, seguiriam, até o momento, de mãos dadas, roxa e alaranjada, vinho, escuras. Enquanto os outros, os que observavam, medrosos de suas cores, seguiriam julgando e escutando sem entender.

"Maluquices !" gritariam, mas Maria e Joana continuariam com as maluquices, então.

Pri Fierro

domingo, 5 de setembro de 2010

Afeto que afeta.


Sentia, toda noite antes de dormir, uma dor aguda que lhe carcomia a espinha dorsal. Mudava de posição, a dor vinha pra frente, no peito. Pensava enfartar ! Olhava o teto e respirava fundo, parecia que lhe haviam arrancado uma parte do corpo, ou que lhe haviam arrancado o corpo todo ! Se contorcia daqui, virava o pescoço e 'clec' um estalo. Revirava o braço e 'clec' outro estalo. Ai, quanta dor !
Pensava em resmungar e olhava pro lado, o via e ele dormia, profundo, pesado. O ronquinho lhe dava ternura em dias como aquele, que a dor era muita ! Deveria ser o contrario, deveria irritá-la, atrapalhava o sono ! Mas não, dava ternura vê-lo com os olhos fechados, sem os óculos de todo o tempo, roncando, dormindo. Nem o acordou, não queria preocupar. Pensou, então, em pedir a uma das filhas algum remédio. Levantou e estremeceu ! Deus, parecia que a dor havia aumentado ! Se arrastou até o quarto, olhou as camas das suas eternas meninas e sorriu. Dormiam feito anjos que queria que fossem, travessas. Quanta ternura tinha em ver aquelas duas partes suas, suas e só suas, dormirem assim, como se a paz do mundo existisse. Beijou uma testa, beijou outra testa e nem as acordou ! Caminhou até a cozinha, apalpou, na ponta dos pés, em cima da geladeira. Engoliu o comprimido com um pouco de água e voltou ao quarto, deitando e cobrindo somente os pés, tinha calor. Fechou os olhos e pensou em todos aqueles que viviam embaixo de suas asas acolhedoras. Tantos ! Quantos ! Ai ! Uma fisgada na cabeça e, ai ! Outra fisgada na coluna. Ai ! Fisgada trás fisgada, o peito cheio de afeto, o coração bambo e molinho de quentura e amor. Quanto amor ! Quanto amor por quanta gente ! Quanta preocupação por todos ! Queria todos perto, protegendo, sem mal nenhum em suas vidas. Queria todos para ela, embaixo de suas patas, prontas garras para arranhar ao primeiro inimigo. Precisavam ? Dava. Queriam ? Dava. Necessitavam um pingo de amor e carinho ? Dava sem nem pensar ! Ai, como se dava ! Se dava tanto, amava tanto que nem sabia como, se dava como mãe se dá, não sabia ser outra coisa, era mãe e não sabia não ser mãe. Se dava tanto ! Ah, mas tanto ! Ás vezes ficava triste por se dar tanto, mas escondia, seguia se dando. Ah, se deu tanto que já não tinha corpo.

Ai, que dor ! Sorriu, de amor.

Pri Fierro