terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sorriso do céu.


Tinha olheiras bastante profundas para a pouca idade, pouco tempo de existência no mundo que lhe sorria amarelo ouro cada vez que ela agarrava um tempinho, entre um passo e outro, para olhar o céu azul da cidade cinza. As olheiras, hoje, não eram de cansaço. Havia dormido mais que o normal. Não que houvesse normal para se dormir. Dormiu o quanto o quis, coisa que não fazia com muita frequência, pois o vizinho sempre acordava aos berros e a parede fininha de seu apartamento deixava todo o som entrar, como se a criatura estivesse do seu lado, berrando escandalosamente em seus ouvidos. Nunca teria filhos.

Ia sentada na sujeira do banco do metro, único transporte público que tinha gosto de tomar. Detestava ônibus e trens com todas as suas forças. Olhava seu reflexo e suas olheiras, pavorosas, na janela escura do vagão. Ao seu lado dormia uma jovem, ela não tinha um pingo de sono. Era só olheiras. Respirou fundo quando a campainha avisou que chegara em sua estação. Hoje não trabalhava, hoje não tinha rumo, hoje era livre. Era tão livre que até se desesperou, não era acostumada com a liberdade ! Só sentia alguma coisa parecida ao olhar o sorriso amarelo do mundo no céu, entre cada passo corrido de seus dias rotineiros. Mas hoje, hoje não tinha rotina, hoje podia fazer o que quisesse fazer !

Saiu do trem e sentiu a brisa do vento que levantou a barra de sua saia ao partir do metro. Fechou os olhos com o desejo de sentir a brisa por todo o corpo, queria voar. Tocou as olheiras roxas, acariciou as bochechas brancas e desceu a mão, sem parar, diretamente para o decote, apertando o coração. Queria voar e sorrir amarelo com o céu. Virou, decidida. Hoje era livre, se livraria. Se desesperou com tamanha liberdade que sentiu. Fitou os trilhos do trem. Sorriu. Hoje era livre, se livraria, sorriria com o céu. Do céu.

Um outro trem se aproximou.

O que se soube, minutos depois, foi que as pessoas que ali viajavam chegaram tarde em seus destinos.
E que o céu abriu em um arco-íris onde a cor amarela reinava, sorrindo.

Pri Fierro.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Por mim. Por Lúcia.


"Com seus olhos grandes de criança mimada, com sua sede de vida e seu medo da vida. Talvez um dia ela cresça."

Agora. Abri a página agora e me transformei em Lúcia. Essa Lúcia. Aquela Lúcia. Sou Lúcia de Tapajós.
Mas só agora, só nessas palavras ditas antes, nunca em corpo, menos em alma.

Entendam, Lúcia era grande, tinha culhões, brilhava, lutou, correu e morreu. Morreu não por ela, morreu por nós. Lúcia era real. Não sou Lúcia, sou as palavras que dizem de Lúcia. Não sou real.

Pureza de Lúcia.

Assim, hoje não escrevo por nada, hoje escrevo porque penso. Penso em mim, e sou Lúcia na frase dita. Meus olhos grandes de criança mimada. Meus olhos grandes e opacos, cansados, sem alma, de criança mimada e orgulhosa que engole, resmunga, chora, se debate e bate. Olhos grandes. Sou Lúcia na minha sede de vida. Vida que me joga pra cima, que me tenta, que trata de me convencer a ver, que me empurra pra frente e puxa pra trás. Que brinca, que leva, que volta, que mexe, remexe. Machuca. Dói e me faz querer doer. Gostar de doer. Sorrir após doer. Respirar a beleza de doer. Sou Lúcia no medo. Meu medo de mim. Meu medo de estar aqui. Meu medo de sumir daqui. Meu medo de não crescer...

Medo do medo. Medo de Lúcia.
Não cresço e, assim como Lúcia, talvez um dia cresça.

Aprendo, é fato, mas não cresço. Não digo por você, Joana, que me dá chacoalhões sem fim, afim de me acordar e ver o mundo que perco por fechar os olhos e não aproveitar toda a beleza que temos em volta. Afim de me acordar e ver a beleza que tenho dentro de mim. Não digo por mais um empurrão, não. Digo por mim. Digo porque percebo sim aonde erro. Percebo sim o que faço. Percebo sim quando afasto. Então, amanhã te peço, não tenha cuidado, me derrube, sem dó. Me tranquiliza saber que você estará aqui para me levantar, também.
Não digo pelos erros, não digo por vocês, não digo por Lena, nem por Tapajós. Não digo por nenhum dos diálogos e, menos ainda, digo por tantos labirintos e confusões que fizeram em meu ser quando vejo tantos dedos e tantos olhares, internos, externos, jogando e só jogando...
Hoje, e só hoje, digo por mim.
Digo que sou Lúcia assim por ser, por ter, por me ver. O espelho, que sou eu, grita o sim. As pernas, que são minhas, se mexem inquietas cada vez que leem a frase. O coração, que pulsa aqui, salta e sabe, é de Lúcia.

Sou palavras, Lúcia.

Pri Fierro.
(citação do livro 'Em câmera lenta' de Renato Tapajós)